Corte de verbas, corrupção, luta ideológica e retrocesso nos principais indicadores formam legado do governo Bolsonaro no setor
postado em 01/01/2023 03:55
A falta de um projeto educacional manifestado em escolhas erradas no comando do Ministério da Educação, o troca-troca de cadeiras e ações orientadas com base em questões ideológicas, resultaram em um quadro caótico na educação brasileira, ao longo do governo Bolsonaro. Uma crise que afeta desde o ensino básico até o ensino superior. Além dos problemas de gestão, o período ficou marcado pelos cortes de verbas, escândalos de corrupção envolvendo pastores, e declarações polêmicas dos cinco ministros que ocuparam a pasta.
Se já não bastasse o complexo cenário, a pandemia de covid-19 ampliou o leque de dificuldades do ensino no país. Sem condições de oferecer um ensino a distância eficiente e de qualidade, o resultado é medido nos grandes números da evasão escolar de milhares de crianças e adolescentes.
Para o especialista em educação e pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas, João Marcelo Borges, os últimos anos foram marcados por um desmonte articulado nas estruturas educacionais do Brasil.
“Se olharmos os últimos quatro anos, a educação como um todo sofreu ataques simbólicos, desprezo político e um desmonte programático. Simbólicos — seja nos constantes ataques a Paulo Freire ou às universidades como espaço de balbúrdia (para usar a expressão de um ex-ministro) —, e políticos — no sentido que foram quatro ministros da educação, todos eles sem experiência prévia no setor, inclusive o atual. E cinco presidentes do Inep, sem contar os esquemas de corrupção no FNDE.”
Com a chegada da pandemia, o ensino tradicional foi forçado a migrar para um modelo remoto, dependente do uso da tecnologia — situação que escancarou desigualdades socioeconômicas. Em novembro de 2020, mais de 5 milhões de meninas e meninos não conseguiram acesso à educação no Brasil – número semelhante ao que o país tinha no início dos anos 2000.
Destes, mais de 40% eram crianças de 6 a 10 anos de idade, etapa em que a escolarização estava praticamente universalizada antes da covid-19. É o que revela o estudo “Cenário da Exclusão Escolar no Brasil — um alerta sobre os impactos da pandemia da covid-19 na Educação”, lançado pelo Unicef, em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). O impacto foi maior entre negros, indígenas e em famílias de baixa renda. Segundo o IBGE, 16,6% das crianças e adolescentes inseridas em núcleos com renda de até um salário-mínimo por pessoa não tiveram acesso de forma alguma à educação.
Ainda conforme Borges, a pandemia foi um período desafiador no mundo inteiro. “No Brasil e na América do Sul talvez um pouco mais, porque o início da pandemia coincidiu com o início do ano letivo. Isso fez com que a gente tivesse um desafio ao processo de ensino e de aprendizagem muito grande que foi aumentado ou agravado pela péssima gestão da pandemia. O retorno foi dificultado pela péssima gestão sanitária e, depois, pela incapacidade de construir as condições no ciclo educacional para acelerar a volta das aulas presenciais.”
Em concordância com Borges, o ex-ministro da educação do governo Dilma Rousseff e presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) Renato Janine Ribeiro, avalia que o projeto do governo Bolsonaro para a educação básica era restrito e limitado.
“Isso tudo é sinal da despriorização da área educacional. Na verdade, não tivemos um projeto educacional, tivemos um projeto ‘deseducacional’. Ele (Bolsonaro) não valoriza a educação, a cultura nem a saúde. Essas pautas foram descuidadas, é muita incompetência junta. Talvez ele tivesse a vontade de destruir as conquistas educacionais das últimas décadas.”
Na linha defendida por Janine, um estudo divulgado pelo programa Todos pela Educação, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), aponta que 41% das crianças de 6 e 7 anos não sabem ler e escrever. Esse é o maior índice de analfabetismo registrado no país desde 2012. O levantamento aponta que o aumento expressivo no número de crianças não alfabetizadas tem impacto mais grave entre alunos negros e pobres. O problema foi agravado pela pandemia.
Borges ressalta que os reflexos da covid-19 ampliaram as desigualdades do país e foram refletidos, também, na área educacional. “Os impactos foram ruins e negativos como um todo, mas foram desiguais. Ou seja, aumentaram as desigualdades que já existiam antes, que são as desigualdades da sociedade brasileira. Um deles é a alfabetização. Teve um agravamento muito forte na taxa de crianças alfabetizadas na idade certa, e uma piora violenta em função de um lado da precariedade do ensino remoto.”
Na avaliação do ex-ministro, o governo Lula terá que trabalhar com políticas públicas voltadas para a educação básica para tentar recuperar e reestruturar as perdas dos últimos quatro anos. Ele exemplifica que a educação básica no setor privado é melhor que no público.
“Quem pode pagar uma escola privada garante um futuro melhor para os filhos. A desigualdade passa pela produção da pobreza. O Brasil foi construído para ser um país desigual desde a escravatura. A gente começa a ter uma mudança disso no final do século 20 e início do 21. Mesmo assim, muita gente faz a educação básica e não consegue aprender o mínimo. E termina o ensino médio com matemática muito ruim. Isso afeta o futuro da pessoa para sempre. Quem não tem um bom domínio não vai ter futuro próspero.”
Novos caminhos
Em sintonia com o que os dois especialistas avaliam, Camilo Santana, anunciado pelo presidente eleito Lula (PT) para assumir o MEC, disse que pretende realizar um pacto com estados e municípios para recuperar a educação, “devastada pelo atual governo”.
Camilo Santana está levando para o ministério a ex-secretária de Educação do Ceará, Izolda Cela. Responsável pela revolução no ensino de Sobral, maior referência cearense na qualidade de alfabetização, Izolda é elogiada por ter criado um sistema coerente, que atrela formação de professores, avaliação de alunos e incentivos financeiros para melhorar, principalmente, a alfabetização das crianças.
“No caso da educação, a indicação da Isolda aponta que o ensino básico vai ser uma prioridade deste governo, justamente pelo que ela fez na educação cearense. Ela (Isolda) vai ser o braço direito do MEC, foi ela quem montou no Ceará o programa de alfabetização no tempo certo. Pela Constituição, a alfabetização está na alçada dos municípios, mas os municípios têm dificuldade de gerir tudo isso. O estado tem que entrar auxiliando nessa parte e foi isso o que o Ceará captou por volta de 2007. O governo do estado ajudou os municípios na alfabetização”, explicou Janine.
O ex-ministro ressalta que é preciso investir na formação de professores alfabetizadores, propor um material didático adequado aos alunos e proporcionar um acompanhamento diário.
“A gente tem que focar a atenção no aluno. Ele tem que aprender a ler e temos que verificar diariamente se ele está aprendendo. À medida em que fez isso, o Ceará alcançou níveis de alfabetização muito bons. Até mesmo estados pobres tiveram êxito na educação. O ponto crucial da educação básica no Brasil ainda é a alfabetização.”
Orçamento do MEC
Além do desafio na educação básica, os especialistas ouvidos pelo Correio apontam que o novo ministro terá que recuperar o protagonismo do MEC e recompor o orçamento da Educação. Relatório apresentado pela equipe de transição, aponta que o ministério sofreu, entre 2019 e 2022, retrocessos institucionais, orçamentários e normativos que afetaram as políticas educacionais e, até, o sistema de ensino superior público. “O que pode ser observado ao longo desses últimos anos foi a falta de planejamento; descontinuidade de políticas setoriais; desarticulação do ministério com os sistemas de ensino estaduais e municipais e da rede federal de ensino; incapacidade de execução orçamentária; e omissões perante os desafios educacionais.”
Especialistas avaliam que a recomposição dos investimentos e dos recursos para custeio das universidades e institutos federais, assim como a garantia das bolsas de estudo para estudantes e pesquisadores, é fundamental para assegurar uma educação de qualidade. Borges explica que será preciso investir muito para recuperar as instituições de ensino.
“O orçamento do MEC em 2022 é o menor em mais de 10 anos em todos os níveis. E aí você tem desafios que vão desde recursos para a merenda escolar, que foram aportados agora que há a inflação e o aumento da pobreza. Portanto, precisa de uma merenda fortalecida, e isso depende de recursos. Mas vai ser necessário muito dinheiro para reestruturar minimamente o funcionamento das instituições federais de ensino. Não só o orçamento de custeio, mas também de investimento e, no caso do custeio, para as bolsas.”
Outra especialista em Educação, Adriana de Melo Ramos, lembra que, ao longo do governo FHC e, sobretudo durante os governos de Lula e Dilma Rousseff, foi ampliada a democratização do ensino superior, técnico e tecnológico.
Adriana observa que, naquele período, foram instituídos programas de pós-graduação em diversas cidades não metropolitanas e efetivados os primeiros passos de uma descentralização da pesquisa no território nacional, de modo a tensionar a histórica e persistente concentração da produção científica e tecnológica nos grandes centros.
“Desde FHC a gente tinha uma crescente. Tivemos avanços significativos no governo Lula e Dilma e, com o governo Bolsonaro, houve um estancamento. Nesses últimos quatro anos, teve o maior rombo em relação ao investimento da educação básica e para as universidades. As bolsas e as pesquisas estão em andamento, e isso é importante para que o Brasil se desenvolva. Isso vai ser um grande problema para o próximo governo.”
Ações imediatas
De acordo com declarações do Grupo Técnico para a Educação do Gabinete de Transição, as diretrizes orçamentárias para o próximo ano preveem um montante para investimento em universidades e em institutos federais 39% menor do que o orçamento de 2010, há mais de uma década.
Os três especialistas ouvidos pelo Correio concordam de forma unânime que a educação terá que ser priorizada, e que será necessário formular políticas públicas para a educação básica, investir na formação continuada dos professores e gestores além de ampliar o orçamento do ensino básico e superior.
Borges explica que reverter o quadro caótico em que Bolsonaro deixou a educação vai depender de muita capacidade de formulação e implementação de políticas públicas.
“Será necessário formular novas estratégias que deem conta de reverter essa tendência de piora crescente, e preparar o país para acelerar o ritmo de melhora, sob pena de a gente ficar cada vez mais distante dos países com os quais a gente quer concorrer. São desafios muito grandes. Como há 30 milhões de pessoas passando fome, é difícil que essa não seja a principal prioridade. Agora, os recursos são escassos, temos problemas no meio ambiente, na saúde, na assistência social, e dar conta disso tudo depois de quatro anos de desmonte vai ser um desafio muito grande. Vai depender de muita capacidade de formulação e implementação de políticas públicas.”
Adriana de Melo afirma que o governo terá que resgatar os planos e ações voltados para a formação dos docentes da educação básica.
“A gente tem outra questão importante sobre a qual o próximo governo vai ter que se debruçar: a formação dos educadores da educação básica. Existiam planos e ações antes do governo Bolsonaro relacionados a isso, e muitas foram extintas. Isso vai ter que ser retomado, ampliado, e será preciso pensar na educação desses professores nas licenciaturas e nos cursos de pedagogia. O Brasil não avança sem gestores qualificados, é preciso ter uma boa base, mas também formar quem já está atuando. Isso é uma grande pauta, ao lado das verbas.”