Formado em direito, mestre em economia e doutor em filosofia, Haddad foi ministro da Educação de 2005 a 2012 e prefeito de São Paulo entre 2013 e 2016
postado em 27/12/2022 13:10
“Responsável formalmente pela condução da política econômica e pela direção dos bancos estatais, o ministro da Fazenda exerce, na prática, a liderança de um primeiro-ministro. Com a peculiaridade de precisar de apenas um voto, o do presidente.”
“Nenhum presidente de empresa privada acumula tanto poder, controla tantos destinos, atrai tanta inveja. Nenhum outro posto da administração pública sofre tanta pressão, recebe tanto escrutínio, é alvo de tantos ataques. Nenhum emprego tem, simultaneamente, tamanha força e fragilidade. É o pior emprego do mundo.”
Assim o jornalista e analista político Thomas Traumann definiu, em seu livro O Pior Emprego do Mundo, o cargo que será ocupado a partir de janeiro por Fernando Haddad.
Formado em direito, mestre em economia e doutor em filosofia, Haddad foi ministro da Educação de 2005 a 2012 e prefeito de São Paulo entre 2013 e 2016. Concorreu à reeleição para prefeito em 2016, à presidência da República em 2018 e ao governo de São Paulo em 2022, sendo derrotado nas três tentativas.
Sua passagem pela prefeitura paulistana é igualmente marcada por altos e baixos: por um lado, renegociou a dívida do município, levando São Paulo a obter o chamado grau de investimento (um selo de bom pagador atribuído por agências de risco), e realizou investimentos recordes, graças ao saneamento das contas públicas.
Por outro, era o prefeito quando explodiram as manifestações de junho de 2013 contra o aumento das tarifas de ônibus, cujas repercussões derrubariam sua aprovação e de toda a classe política, e mudariam os rumos do país nos anos seguintes.
Entenda como a gestão Haddad na prefeitura de São Paulo dá pistas sobre o que pode vir pela frente em sua atuação no Ministério da Fazenda.
Renegociação da dívida do município e grau de investimento
Uma das tarefas mais espinhosas de Haddad na Fazenda será definir uma nova regra fiscal para substituir o teto de gastos — regra aprovada em 2016, durante o governo Michel Temer (MDB), que limita o crescimento da despesa federal à variação da inflação no ano anterior.
Segundo economistas, é preciso que a nova regra seja crível (isto é, que possa de fato ser cumprida, diferentemente do teto de gastos, que acabou sendo “furado” diversas vezes desde sua criação) e indique uma trajetória sustentável para a dívida pública.
Segundo a IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado Federal, a dívida bruta brasileira deve encerrar 2022 em 76,6% do PIB (Produto Interno Bruto), e pode superar 95% em 2031 sem uma limitação das despesas.
Quanto mais alta a dívida pública, maior o volume de juros da economia e mais difícil para o país crescer e gerar empregos.
Para tentar convencer o mercado financeiro de que está cacifado para essa tarefa e que tem um histórico de responsabilidade fiscal, Haddad tem citado sempre a renegociação de dívida que realizou em São Paulo e que levou o município a conquistar o grau de investimento pela agência de risco Fitch.
“O município [de São Paulo] tinha uma situação de endividamento muito complexa, fora dos limites definidos pelo Senado Federal”, lembra Rogério Ceron, ex-secretário de Finanças da gestão Haddad em São Paulo e futuro secretário do Tesouro Nacional no Ministério da Fazenda, conforme anunciado pelo petista pouco antes do Natal.
Segundo Ceron, a dívida à época era equivalente a mais de 2 vezes a receita do município, quando a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelecia um limite de 1,2 vez.
“O principal problema desse endividamento era o contrato de renegociação de dívida com a União”, explica o gestor público. A dívida era então corrigida pelo IGP-DI, um índice de inflação que sofre muito efeito da variação de preços das commodities, mais juros de 9%. “Isso foi fazendo com que a dívida crescesse exponencialmente e era algo insolúvel”, diz Ceron.
Haddad negociou a mudança dessa regra, com a dívida de Estados e municípios passando a ser corrigida pelo IPCA (índice de inflação oficial do país) mais juros de 4% ou a Selic, o que fosse menor.
“Isso reduziu brutalmente o saldo devedor, que caiu de R$ 74 bilhões para menos de R$ 30 bilhões. Agora era possível ver o final dessa dívida e começou um processo de redução dos pagamentos, o que foi gerando um alívio fiscal crescente ao longo dos anos”, diz Ceron.
Como essa renegociação foi concluída ao fim de 2015, Haddad pouco se beneficiou da mudança em seu próprio governo. Mas a renegociação contribuiu para a atual situação confortável das contas públicas de São Paulo, reconhecida até mesmo por seus sucessores.
Como o mercado lê esse episódio
Para Benito Salomão, economista especialista em política fiscal, é fato que Haddad fez uma gestão fiscalmente responsável à frente da prefeitura de São Paulo.
“A preocupação não é com o Haddad, é que a memória dos governos Dilma ainda é muito recente na cabeça dos brasileiros, do setor produtivo e do setor financeiro. E a retórica que o presidente Lula adotou na transição não foi uma retórica ‘market friendly‘, amigável ao ambiente de negócios que o Brasil precisa construir”, diz Salomão.
‘A preocupação não é com Haddad, é que a memória dos governos Dilma ainda é muito recente’, diz Benito Salomão
“Então o principal problema que recai sobre Haddad não é a formação conceitual dele, mas se ele tem condições de se contrapor ao Lula”, afirma.
“Vamos voltar para o padrão de política econômica dos anos 2010 [era Dilma] ou aquele do final dos anos 1990 e começo dos anos 2000 [governos FHC e Lula, quando vigorou o tripé macroeconômico de câmbio flutuante, metas fiscais e meta de inflação]? Essa sinalização não está clara”, avalia o economista.
Para Rafael Cortez, cientista político e sócio da Tendências Consultoria, há ainda outro motivo para o mercado financeiro não se deixar impressionar pela gestão fiscal de Haddad na prefeitura paulistana.
“A redução da dívida municipal, muito embora tenha gerado efeito importante para o caixa da prefeitura, não foi fruto de uma gestão fiscalista ou de corte de gastos”, observa. “Foi basicamente uma negociação política em torno de uma mudança de legislação, que, ao trocar o indexador da dívida, diminuiu o estoque [de dívida] de forma considerável.”
Da prefeitura à Fazenda
Rogério Ceron, futuro secretário do Tesouro e secretário de Finanças da gestão Haddad à época da renegociação da dívida, rebate as críticas.
“Essa questão da dívida tem que se olhar pelo prisma da preocupação dele [Haddad] de longo prazo com a solvência do ente federativo [o município]. Ele tinha uma preocupação legítima com o longo prazo, mesmo sabendo que não seria o maior beneficiário dessa redução [do endividamento]. Isso faz muita diferença, ele é um estadista neste sentido”, defende.
Ceron cita ainda outras medidas tomadas por Haddad para o equilíbrio fiscal de São Paulo, que podem dar pistas do que vem pela frente na Fazenda.
Ele lembra, por exemplo, que o começo do governo Haddad foi marcado por uma profunda revisão de contratos da prefeitura, com um “pente-fino” nas despesas que pode ser replicado em nível federal.
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Também cita que Haddad realizou diversas reformas na gestão tributária para inibir sonegação e reduzir o estoque de créditos tributários. E regulamentou de forma pioneira os aplicativos de transporte individual, o que passou a arrecadar milhões anualmente para o município.
Ainda no âmbito tributário, Ceron cita o aumento da arrecadação fruto de revisão feita no IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano). E quanto à arrecadação maior através de multas — Haddad chegou a ser acusado de criar uma “indústria da multa” no município — o futuro secretário do Tesouro argumenta que foi fruto de melhoria no processo de fiscalização.
“Tudo isso ajudou a elevar a capacidade de investimento, tanto que ele conseguiu entregar as finanças equilibradas e realizar o maior ciclo de investimento em décadas”, diz Ceron — em agosto de 2022, o Estadão Verifica checou a afirmação de que o investimento foi recorde durante a gestão de Haddad na prefeitura, e confirmou a informação como verdadeira.
Investimento federal, concessões e PPPs
A retomada do investimento federal será outro desafio para Haddad à frente da Fazenda.
Entre 2016 e 2020, após a crise econômica e a aprovação da regra do teto de gastos, o investimento no país caiu abaixo do necessário para repor a depreciação do estoque de capital existente.
Apenas a partir de 2021, o investimento voltou a crescer, puxado pelo setor privado, tendência que se manteve em 2022.